quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Coisas feitas de tinta e papel

Por Giovanna Siqueira



           Bloqueei sua mão antes que atingisse meu rosto. No entanto, o estrago já estava feito. Percebi, então, que durante muito tempo eu havia tentado fugir dos fatos, da realidade. Agora, totalmente exposto, eu sabia que minhas próximas palavras seriam, talvez, as mais importantes que eu diria na vida. Mas eu seria capaz de dizê-las? A questão era muito mais complexa do que a falta de coragem. Cada vez que separava meus lábios para emitir algum som, sentia um aperto no peito que não me deixava expressar o quanto eu ainda amava aquela mulher na minha frente, apesar do que ela acabara de tentar fazer a mim. Ela já não era a mesma de quando a conheci. Precisava aceitar que ela se transformara naqueles últimos meses e que isso era inteiramente minha culpa.

             É estranho como, ao fim de uma história, começamos a pensar sobre o começo. Quando chegou até mim, ela acreditava ser possível viver única e simplesmente de arte e amor. Em cada suspiro, ela funcionava como uma planta. Durante o dia ficava não com o gás carbônico, mas com amor, e liberava não oxigênio, mas arte a quem respirasse à sua volta. Durante a noite, o contrário fazia. Obsessiva e egoísta em sua obtenção de energia, de nada mais precisava, todo o resto ignorava. Arte e amor, amor e arte. Vivia assim, numa boemia disfarçada de monotonia e, charmosamente, podia ser exatamente tudo aquilo que queria.

             De algum modo sobrenatural, ela falava diretamente ao meu coração, através de mim. Ela era o bem e o mal, o belo e o feio, a harmonia e o caos. Tudo flutuava dentro dela, todo o universo podia caber ali. Toda essa indefinição – esse mistério a ser desvendado, essa história a ser escrita – tornava as coisas absolutamente fascinantes para mim.

           Era encantador como ela era toda função poética. Suas expressões, sua voz. Cada gesto seu era uma figura de linguagem, um rebuscamento literário, exigia interpretação, um quê de poeta para saber amá-la. Toda noite antes de se deitar, ela ia até a varanda valsar com as estrelas e namorar os astros. "Não quero realismo, quero mágica. Mágica!" Era o que ela me pedia, sorrindo com os olhos, enquanto eu a contemplava em sua infinita beleza.

               Ela gostava muito de histórias. Costumava ficar horas andando por minha biblioteca, admirando as estantes de madeira antiga e empoeirada que chegavam ao teto, abarrotadas. Sobretudo no pôr- do – sol. Parecia uma criança me contando o modo como a luz penetrava entre as estantes e iluminava o ambiente tal que as partículas de poeira livresca pareciam pequenas estrelas brilhando. Passava os dedos pela capa dos livros e cheirava-lhes as páginas, como se pudesse lê-los assim, pela pele, pelo olfato.

         O tempo passou. Eu temia ter criado uma imagem romanceada e fictícia daquela mulher, que começara a se desgastar. Ela sonhava tanto, que já não era capaz de distinguir, dentro da imensidão de sentimentos que a povoavam, as dores que eram suas, e as dores que fantasiava. Não sabia nem ao menos se havia algo de genuíno nela. A verdade é que talvez eu idealizasse demais as coisas amorosas. A verdade é que ela começava a me escapar pelos dedos.

            Eu a machucara diversas vezes e sempre assumira o papel de vítima, enquanto a ela restava ser a vilã. Até que ela se tornou, de fato, a cruel da história. Eu provoquei tudo isso. Voluntariamente ou não, sou o responsável. As consequências de meus atos talvez não sejam castigo suficiente, mas já doem com o peso da culpa caindo sobre meus ombros.

             “Adeus”, eu disse sem lágrimas nos olhos, sem sentimento algum, e me virei de costas na direção oposta ao caminho que desejava tomar – o dela – como um último ato de covardia e indiferença, depois de tudo que havíamos vivido. Minha voz só não falhou para dizer aquela última e derradeira palavra; quanto às palavras de amor, que ainda ecoavam em minha cabeça, minha voz permaneceu intransigente. Nada. Nada de natureza amorosa foi acrescido ao espetáculo de minha tragédia e incompetência no ramo dos sentimentos.

               Para bani-la permanentemente de minha vida, teclei o ponto final depois das letras que formavam a palavra “fim”. Puxei aquela última folha de minha velha máquina de escrever e a atirei solenemente pela janela de minha biblioteca, para que o vento, e não mais eu, fosse o responsável pelo destino daquela pobre mulher que tivera o azar de ser minha personagem.

                As coisas feitas de tinta e papel me são tangíveis demais.



Conto escrito com base na experiência estética que tive com o livro A menina que roubava livros, de Markus Zusak.

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