quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Em tarde, ser.

Minha experiência estética não é, necessariamente, fruto do passado ou de algum evento colossal. Ela é constante, se repete sem querer e me acalma toda vez em que enuncia-se. É responsável por me fazer esquecer de tudo e apenas deixar fluir pensamentos, lembranças e sentimentos - todos inocentemente alegres. 

Talvez pelo fato de eu possuir uma ligação forte pelas 'rodoveias' do estado de São Paulo, mudo de humor quando descubro que a data de alguma viagem coincide com o dia de amanhã. As vezes me é muito mais prazerosa a sensação de viajar do que a da chegada. Não entendo como existem pessoas que conseguem encostar-se na janela enorme do ônibus/carro e dormir. Considero uma ofensa à paisagem. Toda a imensidão azul e amarela dos campos de trigo; os eucalíptos compridos; a belíssima e fria mata atlântica ou até mesmo as sintilantes cores vermelhas e verdes da cidade. Como é possível trocá-las por mera soneca?

Enfim, como talvez eu não consiga expressar o que sinto através do campo imagético, sugiro que, antes de começar a ler esse pequeno relato, vá à terceira gaveta daquele armário marrom claro que fica no quarto de visitas e procure pelos cd's da coleção do seu pai. Misture o violão de Caetano com o vocal da Elis, do Renato, da Marisa e da dona Bethânia. Segure tudo com as mãos, mas calma, ainda há espaço nos seus bolsos! Celular? Carteira? Não não não, tire-os imediatamente e trate de vestir algo leve. 
Assim.
Bem melhor.
Agora que os bolsos estão livres, adicione alguns conselhos de Tom e Vinícius nos da frente e, para os detrás, a parceria de Rita e Milton. Está conseguindo se equilibrar? 
Ok. 
Então agora abra a boca que ainda dá pra levar mais um verso torto do Adoniran.
Perfeito! 
Me siga, ouço o ronco do motor. Calma, calma, sua mala já está no banco da frente e não há com o que se preocupar.

Sente-se e sinta.

Os músicos nos recebem cordialmente, pedem para nos acomodarmos naquelas cadeiras de elástico colorido e para tirarmos as havainas. Devagarzinho os prédios começam a desaparecer, esmiudando-se perante o verde. Conversas vão, aos poucos, perdendo vergonha e conquistando risadas. Cada árvore passa como flecha, exceto as grandes, que custam a desaparecer dos nossos óculos escuros. O concreto cinza do chão insiste em me mostrar suas tatuagens brancas e seus piercings em forma de placas eletrônicas. Os fios dos postes são hipnóticos em seu ligeiro sobe e desce. De repente o logotipo lateral de um caminhão de 22 metros ofusca a natureza. Angustiado, aguardo seu imenso corpo metálico - ou, por vezes, corpo repleto de suínos - esvair-se ao meu redor para que eu possa voltar a admirar quieto. Petiscos feitos pela manhã ainda estão quentes, portanto combinam muito bem com o refrigerante que manteve-se parcialmente congelado no alúminio. Postos e restaurantes, antigos ou iniciantes, todos possuem seu odor único e imutável. Joelhos refortalecem-se enquanto a água fria organiza os cabelos impondo-lhes a ordem de permanecerem estáticos. Pobre água que não conhece o veludo traiçoeiro do travesseiro... Quinze minutos bastam para que todos se agrupem novamente, com seus músculos relaxados, calças e camisas levemente amassadas, bexigas vazias e hálito fresco, sabor canela. Os instrumentos falam mais alto que buzinas e o cinto de segurança promove união de irmãos. O céu começa a se alaranjar e eu permaneço examinando o sol, me despedindo enamoradamente. 

Eis aí que chegamos ao ápice do trajeto:

Majestosamente brota do útero do entardecer uma orquestra enorme. Raízes, galhos, rochedos, barro, areia, tudo parece entrar em sintonia e berrar de forma que poucos a escutem. O sussuro da mata alcança a alma. O laço perfeito se dá quando a música que me habita condiz com o que vejo. Abro a janela, o ar quente me invade por completo. Minha pele deixa-se corar com os resquícios dourados da estrela maior e a única coisa racional que me resta fazer é viver. Viver intensamente durante esse pequeno espaço de tempo em que a perfeição simultânea da audição, da visão, do olfato e do tato coligam-se em uma só frequência natural máxima.
Me desfaleço enquanto a melodia e o sol apagam-se lentamente. 

Todos descem do veículo e eu apenas tento procurar em mim algum raio último de um espetáculo diário.

Luís Fernando Nicolosi de Oliveira

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