quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Garotos

O cheiro de empanadas vindas de uma singela barraca na porta da rodoviaria de La Paz me fez salivar, mas com os pouco bolivianos que tinhamos não podiamos desperdiçar com mais nada. Já faziam duas semanas que estavamos viajando e a viagem não estava nem na metade. Após desviar de muitos contrabandistas que tentavam nos empurrar passagens de onibus falsas, embarcamos em um ônibus rumo ao Uyuni, que sinceramente admito que foi a viagem mais desconfortavel que já fiz em toda minha vida. O meu assento de molas quebradas rangia a cada pequeno movimento que eu me ousava a fazer, cachorros latiam e bebês choravam. Um homem de cabelos grisalhos tossia incessantemente enquanto comia um cheeseburguer que cheirava como se tivesse sido retirado diretamente do esgoto . Tudo indicava que estas seriam 12 longas horas de viagem, mas quando o onibus partiu, começou a nevar. A neve se debatia na janela do ônibus enquanto cruzavamos um gigantesco deserto, estava noite já, portanto podiamos ver apenas as silhuetas de algumas formações rochosas mais elevadas. De certa forma, apesar de toda a situação em que eu estava, me sentia inspirado e feliz por estar ali.

Ainda meio zonzo pelo efeito de um Dramin que havia tomado, acordei com uma luz azulada batendo em meu rosto; haviamos chegado. Esperando na porta do onibus estava uma boliviana baixa e gordinha com uma toalha amarelada de listras pretas nos esperando com uma placa com nossos nomes, nós a apelidamos de "abelinha". Ela não parecia muito contente em estar de pé tão cedo, mas nos direcionou a um jeep já envelhecido pelo tempo e chamou o seu marido que nos guiaria durante os próximos 3 dias até a San Pedro de Atacama. Infelizmente não me lembro de seu nome, ele era um homem de poucas palavras. 


Cruzamos desertos de sais, de areia e de alpacas. Comemos carne de lhama fria e tomamos um cognac barato para nos socorrermos de uma possivel hipotermia, mas foi apenas na última noite que tive o que ouso chamar de uma experiência estética.

Atrasados por termos decidido tomar mais tempo do que deviamos em uma parte do deserto conhecido como Deserto de Dali, acabamos ficando sem lugar na hospedagem que tinhamos a intenção de ficar. Nosso guia acabou nos levando para uma casa, um pouco mais afastada da onde as outras hospedagens estavam. Era uma casa meio caída, com varios vidros quebrados e telhas remendadas com papel aluminio. Se eu não soubesse, diria até que estava abandonada. O guia trocou algumas poucas palavras com as mulheres e depois nos guiou para o quarto onde iriamos dormir. Talvez por estarmos cansados ficamos um pouco traumatizados com o que vimos: 5 camas de pedra com um colchão de pouco mais de 10 cm de espessura, com lençol e um cobertor muito fino.

Enquanto jantavamos um macarrão improvisado, dois garotos de seus 7 anos que moravam na casa apareceram e nos perguntaram se queriamos escutar uma música por alguns trocados. Um pouco sem jeito, tentamos explicar com o nosso portunhol enferrujado que não tinhamos como recompensá-los, então um deles disse que poderiamos "pagar" com canetas para que ele pudessem desenhar. Já emocionados com o pedido do garoto, demos uma caneta para cada um esperando que eles ligassem algum aparato para tocar música. 


O primeiro garoto começou a cantar, e o segundo, meio encabulado, logo o seguiu. Diante daquele dueto inesperado ficamos perplexos, emocionados. Aquelas duas crianças que pouco tinham destacaram-se naquele longo corredor vazio e silencioso de tal forma que todos nós na mesa paramos de reclamar do frio e do cansaço apenas para escutá-los. Não entediamos muito do que eles estavam cantando, provavelmente tratava-se de alguma cantiga local, mas de qualquer jeito, foi lindo. Senti na pele um exemplo de simplicidade e inocência que nunca antes havia presenciado. Quando terminaram, aplaudimos com vigor. Os dois garotos agradeceram e correram de volta para sua casa envergonhados.

http://www.fernando.arq.br/estrelas.htm
Mais tarde, resolvi enfrentar o frio e a escuridão para ver como estaria o céu naquela região tão distante da civilização. Ao passar pela janela da casa dos garotos, os vi desenhando em papeis de embalagens de cereais, e resolvi voltar ao quarto para buscar em minha mala mais algumas canetas que juntei no decorrer da viagem para entrega-las a eles. Quando saí, me deparei com o céu mais estrelado que vi  em toda minha vida. Acendi um cigarro e passei alguns minutos no frio, encarando apenas imensidão daqueles pontos brilhantes. 

Uma pequena mão puxou o meu casaco.

"O senhor quer brincar com a gente?", disse um dos garotinhos. Eu, como sou preguiçoso respondi que era muito velho, e que estava frio. Não me lembro exatamente quais foram as palavras, mas o garoto me respondeu: "Nunca se é velho o bastante para brincar", dando um sorriso sagaz. Brinquei de pega-pega com elas por pouco tempo, nem 2 minutos, pois acho que a mãe  ficou preocupada por estarem com um estranho. Antes de partirem entreguei o resto das canetas que eu tinha no bolso para as crianças que comemoraram voltando para casa.

Nem liguei para a noite mais fria de toda a viagem, de certa forma acredito que o que havia ocorrido ali fora o que eu mais procurava quando decidi mochilar.



Pedro Reali

Nenhum comentário:

Postar um comentário